Triste ou doce? Mistura elusiva de ambas? A melancolia inspira o mundo da arte desde os primórdios da história. Necessidade humana – tão universal quanto misteriosa e cativante, ela existia muito antes de a nomearmos de modo um tanto quanto desajeitado. A melancolia se esconde; dentro de nós há um poço secreto onde borbulha a bílis negra, desejosa de nos consumir. (Foi apenas no final do século 19 que ficou provada categoricamente a inexistência da bílis negra).
A nostalgia, por outro lado – apesar de ser um sentimento diferente – é parente próxima da melancolia. Ambas são tão intricadamente entrelaçadas que, quando misturadas, produzem uma liga emocional potente. Várias línguas possuem palavras próprias, e bastante queridas, para esse sentimento: “saudade” no Brasil, “sevdah” na Bósnia, “Hiraeth” no País de Gales, “Morriña” na Galícia, “Sehnsucht” na Alemanha, entre outras. Pode-se dizer que todos esses termos expressam a mesma coisa, divergindo apenas na proporção exata entre melancolia e nostalgia, mas o fato é que cada uma dessas nações é extremamente orgulhosa (e um tanto possessiva) quanto à sua própria tradição melancólica, insistindo que ninguém mais pode realmente entender ou compreender seu modo particular de sentir tal dor. Melancolia e nostalgia são, portanto, construções culturais.
O excerto citado acima, do famoso livro Anatomia da melancolia de Robert Burton (1621), representa elegantemente a dualidade fabulosa do sentimento: prazer e dor, magnetismo e repulsão. Contemporâneo de John Dowland, Burton dedicou a vida ao estudo da melancolia; Dowland, por sua vez, tornou-se seu cultuador, utilizando-a até como ferramenta de marketing pessoal. É sabido que assinava suas cartas com “Semper Dowland, semper dolens” (“Sempre Dowland, sempre dolente”), e frequentemente batizava suas composições com títulos melancólicos. Sua “Forlorn Hope Fancy”, por exemplo, é uma fantasia cromática, assustadoramente bela, construída sobre um tema cromático descendente de seis notas. Na retórica musical de seu tempo isso poderia até sugerir uma lágrima, o mais profundo desespero, ou até mesmo a morte. Se a melancolia de Dowland era forçada ou real é de pouca importância: ao voltar-se a ela, o compositor produziu uma das obras mestras da Renascença, unindo as mais avançadas técnicas polifônicas da época com o mais profundo efeito expressivo.
Da Grécia antiga à Idade Média, a melancolia era considerada uma doença. Aristóteles, por exemplo, chegou até a se perguntar por que ela parecia afligir especialmente artistas e oradores. No período elisabetano, porém, viver sob a égide da bílis negra passou a ser um fator de prestígio para um artista. Surgiu o culto da melancolia, e Dowland abraçou-o com entusiasmo, tornando-se um melancólico profissional. Essa transformação de patologia em reconhecimento dá-se num ponto intermediário entre esses períodos.
Se a melancolia é atrelada a um conceito de nação, “Choro da Saudade,” de Agustín Barrios, parece desafiar o modelo. “Choro” é um estilo de música popular brasileira com ritmo e estrutura distintos, enquanto “saudade” (como já sugerido acima) é, de acordo com brasileiros, uma espécie de fusão emocional mística, característica deles, de tristeza e desejo. Barrios, porém, era paraguaio, e escreveu o “Choro da Saudade” para um querido amigo brasileiro cujo filho, Américo Piratininga de Camargo, havia morrido subitamente. Em meio a circunstâncias trágicas, Barrios homenageava, por intermédio de uma peça de beleza extraordinária, tanto seu amigo quanto a cultura brasileira. A elegia de Barrios logo se tornou uma das peças mais populares do repertório violonístico. Aqui, porém, a “saudade” brasileira surge imaginada e compreendida por um paraguaio e tocada por um croata – um turismo da melancolia do outro.
“Lament” de Dusan Bogdanovic é um caso diverso. Escrita após a morte do pai do compositor, ela apresenta forte influência não só da música dos Bálcãs, com sua escrita modal, melismas e ornamentos, mas também da “sevdah”, o equivalente regional da “saudade”. “Lament” é uma peça lindíssima, nostálgica e ainda assim apaixonada, a qual o próprio compositor conta entre suas melhores. Aqui, compositor e instrumentista são dos Bálcãs: poderia haver melancolia mais autêntica?
Certas peças, porém, parecem evocar sentimentos melancólicos sem depender de qualquer experiência pessoal prévia: melancolia em tabula rasa. A música de Astor Piazzolla às vezes tem esse poder. O estilo único e característico de Roland Dyens como arranjador premia-nos com um arranjo extraordinário de “Oblivion”. Sua voz rica produz uma textura viscosa que, espraiada com gotículas de jazz, flui adiante de frase em frase; lava que escorre num olvidar petrificado. Arranjar Piazzolla foi o último grande projeto de Roland. Publicado postumamente numa coleção apropriadamente chamada de O último tango, vejo-a como uma espécie de testamento de Roland, a melodia corajosa do argentino inigualavelmente assinada pelo francês.
“Tombeau” é um gênero musical inventado por alaudistas no começo do Barroco como uma expressão de pesar e respeito diante do falecimento de um amigo ou colega ilustre. O íntimo e sensível alaúde parece ter sido o meio ideal para tal empreitada melancólica. O mais antigo “tombeau” que conhecemos foi composto pelo mestre do alaúde francês Ennemond Gaultier em 1638; o gênero logo se espalhou e foi inevitavelmente adotado por cravistas (Froberger, Couperin).
Com o desaparecimento do alaúde no final do século 18, o “tombeau” também evanesceu até que Ravel o ressuscitou brilhantemente em “Le Tombeau de Couperin”. A obra foi composta como homenagem a seu colega, o alaudista Jan Antonin Losy. É uma obra-prima do gênero, bela e tocante, com longas progressões, e notas e acordes inusitadamente insistentes que intensificam a lamentosa tristeza que ele deve ter sentido. Na obra, a melancolia que impera contrasta com uma escala cromática final ascendente, longa, otimista.
Em 1895, Debussy escreveu a um amigo que voltava da Espanha: “…mas, acima de tudo, traga-me de volta um violão do qual escapará, quando ferido – como um fino pó sonoro – toda a melancolia bárbara que ele continha outrora”. Em 1920 Manuel de Falla domou brilhantemente aquela “melancolia bárbara” solta e selvagem, cristalizando-a em “Homenaje” antes de devolver ao violão o poder de a exalar novamente. Raramente uma obra-prima de tão curta duração teve maior significado histórico. (É ainda mais curta que os 4’33 de Cage).
Convidado a participar de um projeto em homenagem a Debussy, idealizado pela prestigiosa revista francesa La revue musicale e que incluía alguns dos compositores mais importantes da época (Stravinsky, Bartók etc.), Falla escolheu, ousadamente, o violão como seu meio de expressão. Com este golpe de mestre, ele não apenas homenageou seu amigo e mentor, Debussy (que demonstrara uma atração pelo violão e pela música espanhola), mas também contestou um preconceito profundamente arraigado na época: o de que o violão era apenas uma folclórica caixa de dedilhar. A obra de Falla, portanto, não apenas ajudou a abrir as portas para o violão como instrumento de concerto, como destilou com maestria os elementos brutos do “Cante Jondo” do flamenco e os incutiu em cada nota, fazendo da “melancolia bárbara” sua principal força motriz.
Sir William Walton descreveu “Elegy for Guitar” de Alan Rawsthorne como uma música “de beleza melancólica e assombrosa”. Considerada uma das composições mais comoventes de toda a produção de Rawsthorne, ela foi deixada incompleta com o falecimento do compositor. Julian Bream, para quem a “Elegy” foi escrita, completou-a com maestria, recapitulando a seção de abertura e combinando esboços que Rawsthorne deixara. “Elegy” é caracterizada por uma escrita muito clara e austera, sem precisar de muitas notas. Linhas bastante cruas avançam pela partitura, flertando aqui com o serialismo, ali com a tonalidade, sempre temperadas com o poderoso motivo das iniciais musicais de Shostakovitch “D-S-C-H”. Estaria Rawsthorne enviando uma mensagem ao compositor que o inspirara? “Elegy” é uma peça rica, com impacto emocional muito forte, é sincera e honesta. Longe de ser um ato de desespero, a obra representa a alegria dos momentos finais de comunicação com e através da música.
No mundo do cinema, melancolia e nostalgia têm um significado desmedido; parecem, inclusive, ser parte integrante da sétima arte. Cinema Paradiso de Stephen Goss inclui um movimento que celebra Charlie Chaplin, a própria personificação da melancolia. Uso as palavras do próprio compositor para descrever essa magnífica peça:
Cinema Paradiso é música sobre o cinema. Cada um dos seis movimentos curtos homenageia um diretor ou gênero. Em “Paris, Texas,” quis evocar a atmosfera única do filme de Wim Wenders de 1984, explorando a semelhança entre os vastos espaços do deserto texano e o vazio interno da solidão da perda. A música faz alusão à assombrosa trilha sonora de Ry Cooder.
O segundo movimento improvisa uma cena de Tempos modernos (1936) de Charlie Chaplin. Aqui o personagem de Chaplin está trabalhando numa linha de produção: a música muda de velocidade conforme a câmera passa de uma máquina para outra. Em pouco tempo, Chaplin não consegue acompanhar a esteira e acaba sendo engolido pela enorme máquina. Após fugir do controle, a máquina para; ao reiniciar, Chaplin é regurgitado suavemente por ela e a produção pode continuar.
“Noir” é uma homenagem a todo um gênero. O crime jazz tornou-se a trilha sonora do Film Noir a partir da década de 1950 – é música capciosa, decadente, cheia da fumaça de cantos escuros. A partitura de Miles Davis para Asenseur pour l’échafaud (1958) e de Duke Ellington para Anatomy of a Murder (1959) exemplificam o estilo. Dogville (2003), de Lars von Trier, explora a decadência individual e social ao interrogar a fragilidade da civilização. Com base em Ascensão e queda da cidade de Mahagonny, de Kurt Weill e Bertolt Brecht, o filme descreve a autodestruição de toda uma comunidade. “Mandalay” distorce o estilo musical de Kurt Weill através do prisma niilista de von Trier.
Em Fahrenheit 451 (1966) de FrançoisTruffaut – ambientado em um futuro distópico – a leitura é proibida e todos os livros são queimados. “451” centra-se nas “pessoas do livro”, que vivem à margem dessa sociedade, aprendendo livros de cor e ensinando-os uns aos outros para manter a leitura viva. Segundo esse princípio do filme, não há partitura para “451”. Os intérpretes têm de aprender a obra por intermédio de outra pessoa, isto é, a partir de uma gravação ou vídeo. A partitura original foi queimada.
“Tarantino” é uma tarantella curta – uma dança até a morte causada não pela picada de uma aranha, mas pela agulha de uma overdose de heroína. A música alude ao mundo de Pulp Fiction (1994) de Quentin Tarantino – violento, insensível, insolente, de tirar o fôlego.
Como faixa bônus incluí minha própria versão de “Melancholia” de Duke Ellington. O “duque” parece ter conseguido invocar, com um estalar de dedos, uma musa melancólica. Transcrevi-a a partir de sua versão para piano solo gravada no álbum The Duke Plays Ellington, de 1953. Suave, bonita e plena de melancolia sensual, não a copiei nota por nota, mas tentei fazê-la como sugere o título de uma outra música de Ellington – “Kinda Dukish” (“Como o Duque”).
Os gregos antigos chamavam-na de melas (preto), chole (bílis), mas seria a melancolia uma patologia incômoda, como eles a tinham, ou um estado de espírito inspirador, como queria Dowland? Ou, ainda, estaria ela a oscilar continuamente em alguma posição intermediária? Seria um estado puro e solene da alma humana? Ou decorre da simples alegria de chorar uma lágrima silenciosa e solitária? A bílis negra pode não fluir literalmente em nossas veias, mas a imagem de seu magnetismo líquido pode ajudar a explicar nossa atração hipnotizante pelo sentimento a ela associada.
01 – A.PIAZZOLLA
OBLIVION (ARR. ROLAND DYENS)
02 – J. DOWLAND
FORLORN HOPE FANCY
03 – D. BOGDANOVIC
LAMENT
04 – S.L.WEISS
TOMBEAU SUR LA MORT DE M. COMTE DE LOGY
05 – M. DE FALLA
HOMENAJE A DEBUSSY
06 – A. BARRIOS
CHORO DA SAUDADE
07 – A. RAWSTHORNE
ELEGY
STEPHEN GOSS – CINEMA PARADISO
08 – PARIS, TEXAS
09 – MODERN TIMES
10 – NOIR
11 – MANDALAY
12 – 451
13 – TARANTINO
14 – D. ELLINGTON
MELANCHOLIA