Várias obras deste CD estão entre as favoritas do repertório do violão, portanto muitos ouvintes ficarão surpresos em saber que Albéniz e Granados nunca escreveram uma nota original para este instrumento. Ambos foram pianistas de profissão, e sua obra, consequentemente, tem o piano como foco principal. Porém, ambos pertenceram à geração romântica de compositores nacionalistas espanhóis; grande parte de seu projeto estético residiu na busca de uma sonoridade especificamente espanhola, fosse em estilo melódico, ritmo, harmonia ou ambientação sonora. Em todos estes quesitos, a presença do violão é incontornável. O uso de desvios de harmonia típicos do violão e a vibração sonora dos punteados e rasgueos da guitarra flamenca afloram a intervalos regulares na escrita pianística destes autores. A prática de transcrever estas obras para o violão já era corrente enquanto eles ainda estavam vivos, e em alguns casos, como Asturias ou La Maja de Goya, a transcrição tornou-se mais conhecida que os próprios originais.
O primeiro violonista a transcrever Albéniz e Malats para o violão foi Francisco Tárrega (1852-1909); o primeiro a transcrever Granados foi Miguel Llobet (1878-1938). Suas transcrições, junto às de Andrés Segovia (1893-1987) são até hoje consideradas modelares, e eu as utilizo com pequenas correções. Curiosamente, este quinteto de compositores que tanto contribuiu para disseminar as cores fortes do Sul vinha do nordeste da Espanha (Albéniz, Granados, Malats e Llobet eram catalães; Tárrega era valenciano). Há razão para acreditar que ao menos Albéniz aprovava a transcrição de suas obras para o violão. Um relato de época descreve a reação de Albéniz ao ouvir Tárrega tocar uma de suas peças ao violão: transtornado pela emoção, ele teria dito “foi isto que imaginei!”. Albéniz também elogiou Llobet em sua correspondência e convidou-o a tocar suas transcrições em concerto.
A imaginação de Isaac Albéniz y Pascual como compositor só se rivalizava com sua criatividade em reinventar o passado. Provavelmente ele não fugiu de casa aos 8 anos para tocar num navio com destino a Cuba; tampouco foi recusado como aluno do Conservatório de Paris aos 6. Fato é que ele foi menino-prodígio como pianista; que sua juventude foi marcada por tragédias familiares; que estudou com Reinecke na Alemanha e possivelmente teve contato com Liszt; que desenvolveu sua linha estética sob a influência de Felipe Pedrell; que foi contratado para escrever óperas em inglês sobre libretos de seu benfeitor, o banqueiro Money-Coutts; que recebeu a Legião de Honra da França pouco antes de morrer em 1909.
Suas primeiras peças são leves e brilhantes, praticamente música de salão; uma fase intermediária mostra um considerável amadurecimento da linguagem e um perfil espanhol já bastante pronunciado; e a fase final traz um compositor visionário, com obras de alta complexidade que reinventam o conceito de nacionalismo e expandem a sonoridade do piano, sobretudo Iberia, La Vega e Azulejos.
À primeira fase pertence a deliciosa Pavana-Capricho op.12 (1882), inspirada nas antigas danças espanholas, cuja sonoridade foi totalmente re-elaborada na transcrição de Tárrega. A maioria das obras transcritas para o violão pertence à segunda fase, onde sua escrita pianística tentou imitar de uma forma mais literal os traços fisionômicos do violão espanhol. As 12 Piezas Características, op.92 (1888), são uma coleção desigual que inclui peças de salão, como o bem-humorado Minuetto a Sylvia, que produz uma sonoridade encantadora no violão, e peças de um nacionalismo já consistente, como Torre Bermeja, mais conhecida como obra de violão que no original. Aqui Albéniz engenhosamente tece uma mescla de dança castiça com elementos mouriscos, numa melodia de larga amplitude sobre um movimentado arabesco. Muitos fãs de Albéniz já devem ter procurado a torre castanho-avermelhada no palácio Alhambra, em Granada, para se desapontarem com um anexo de duas torres meio desenxabidas, mas lembremos que Alhambra significa Castelo Vermelho em árabe. Uma outra peça avulsa, Zambra Granadina, evoca também as festas noturnas dos ciganos de Granada, com uso extensivo do modo frígio, característico da música árabe. De outra coleção, já mais consistente, España, seis páginas de álbum, op.165 (1890) vem o Capricho Catalán, uma melodia idílica construída sobre um ritmo constante.
A peça que abre o CD, Asturias – Leyenda, é a quintessência da música espanhola para violão. Seu conteúdo musical, com um ostinato inicial e a copla mourisca da seção central, é evidentemente andaluz e nada tem em comum com a música asturiana. Ela foi composta no início dos anos 1890, e publicada como o Prelúdio da coleção Chants d’Espagne, op.232, em 1892. Em 1911, depois da morte de Albéniz, um editor alemão publicou uma versão “completa”, com 8 peças, da Suite Española, op.47, originalmente publicada em 1886 somente com 4 peças. O que este editor alemão fez foi incluir obras extraídas de outras fontes para completar uma suíte de 8 peças, com novos títulos referentes a localidades espanholas (Sevilla, Cádiz, Aragón, etc.). Ouvintes imaginativos têm ouvido nesta obra sons de tempestades ou o perfil denteado dos Picos de Europa, mas o que mais chama minha atenção, além do arabismo da peça, é a intrusão de harmonias puramente diatônicas no último minuto, como se Albéniz quisesse descrever a fricção de elementos árabes contra os cristãos. Como Albéniz se considerava um descendente de árabes, a reconquista cristã é deixada em aberto, com um final interrogativo.
Com uma qualidade mais poética e menos aventuresca que a de Albéniz, a música de Pantaleón Enrique Granados Campiña constitui o segundo pilar do nacionalismo musical espanhol. Além de amigos, ambos foram notáveis pianistas e morreram relativamente jovens, aos 49 anos de idade (Granados afogou-se quando o navio que o trazia de volta dos EUA foi torpedeado na 1a Guerra). Seus colegas invariavelmente descreviam-no como uma pessoa satisfeita, bem-humorada e generosa. Sua música de piano absorve em profundidade a poética da 1a metade do século XIX: a aura de Schumann, Schubert e Chopin sempre emoldura seu universo sonoro.
A Dedicatória, primeira peça de seu op.1, Contos da Juventude, é um claro eco do início das Cenas Infantis de Schumann. Mas a originalidade da linguagem de Granados já aparece totalmente transfigurada na sua maior obra da juventude, as 12 Danzas Españolas, compostas em Paris e publicadas em 1890. Se Granados não houvesse composto nada além destas danças, seu nome já estaria garantido na história da música espanhola. Todas são escritas em forma ternária e se valem de uma qualidade repetitiva algo hipnótica, que se desdobra sobre si mesma, como uma dança de roda. Granados colocou títulos em apenas duas delas, entre as quais a no. 4, Villanesca (pastoral), inspirada em Torquato Tasso e baseada num pedal reminiscente de instrumentos rústicos como a gaita de foles. A mesma melodia é transformada num lamento espanhol na seção central. A dança no. 5, conhecida como Andaluza ou Playera, é possivelmente a peça mais conhecida de Granados. Aqui a obstinação é voltada para uma figura ornamental nos baixos, que dá suporte a uma melodia exaltada. A dança no.10, Danza Triste ou Melancólica, cria a o efeito de vertigem com a constante alternância entre dois acordes e súbitas modulações. A seção central aqui, em contraste às anteriores, é tematicamente bem mais elaborada.
O autor consegue, em suas 12 danças, uma qualidade rara: todas elas são verdadeiros bichinhos no ouvido. Lá elas entram, agradam e levam uma vida toda para sair. Granados tinha fascínio pelo universo do pintor Francisco Goya; sua obra mais conseguida para o piano, Goyescas, é feita de improvisos sobre imagens do final do século XVIII e início do XIX. Tal foi o êxito dessa obra que Granados compôs, mais tarde, uma ópera com o mesmo título, baseada no mesmo material; estreada no Metropolitan de Nova York, ela foi o pretexto da viagem aos EUA em cujo retorno Granados pereceu. Uma outra obra vocal baseada em temas goyescos são as 12 Tonadillas en Estilo Antiguo, que procuram recriar a atmosfera de salão do mesmo período. A qualidade do texto é inversamente proporcional à sofisticação da música, o que talvez explique o sucesso da transcrição para violão desta sensual La Maja de Goya.
Joaquin Malats i Miarons foi um dos grandes mestres da tradição pianística de Barcelona. Ele escreveu uma quantidade razoável de música de piano de caráter despretensioso, e obras sinfônicas de grande porte. Como pianista, teve um êxito notável nos EUA e era um dos favoritos de Albéniz, que diz em sua correspondência que compunha Iberia tendo o piano de Malats em mente (Malats estreou grande parte de Iberia depois da morte do compositor). Esta Serenata Española é uma obra charmosa que tem sua dimensão dramática ampliada pelo violão. A extrema popularidade na versão de violão fez com que o original se tornasse uma verdadeira raridade.
©Fabio Zanon 2016
Idealização: GuitarCoop
Gravação: Estúdio Cantareira, São Paulo, Brasil – 04-06 de Fevereiro, 2013
Produção: Music Maru -Estúdio Cantareira,
Gravação, mixagem, edição: Ricardo Marui
Masterização: Ricardo Marui, Pietro Correa
Tradução: Stella Klujsza
Design Gráfico, Web e Fotos: Eduardo Sardinha
Textos:: Fabio Zanon
Violão: David (José) Rubio 1967, cortesia de André Périgo; cordas Savarez
Transcrições: Faixas 7, 9, 10 e 11: Miguel Llobet; 1: Andrés Segovia; 6 e 12: Francisco Tárrega; 2, 3, 4, 5 e 8: Fabio Zanon
Agradecimentos: André Périgo, Ricardo Marui, Glauber Rocha, Ricardo Dias, Marcelo Kayath, Mariana Barbosa, Catarina e Francisco Zanon .
Este CD é dedicado aos professores Antonio Carlos Guedes e Eraldo Pinheiro (in memoriam), por me contaminarem com o entusiasmo pela música espanhola.