Estética da absorção de Francisco Mignone

Francisco Mignone tornou-se compositor num momento de inflexão na cultura nacional: São Paulo, cidade onde cresceu e se formou, deixava de ser um entreposto comercial para assumir o papel de centro industrial e financeiro do país. Ali, numa cidade em que alguns bairros rapidamente se tornavam uma extensão da Itália, Mignone cresceu testemunhando uma espécie de batalha entre as cançonetas italianas invasoras, a música caipira que se gradualmente tomava conta da capital, e a música popular urbana de matriz africana, como os batuques e maxixes. Esse foi o ambiente em que as discussões estéticas, animadas sobretudo por Mario de Andrade, tencionavam, em suas palavras, “conformar a produção humana do país com a realidade nacional”. Isso se traduz em uma busca por uma fisionomia nacional em música clássica, que tem um marco na Semana de Arte Moderna de 1922 e se agita ao sabor das ondas políticas.

Villa-Lobos, nesse contexto, foi relativamente independente, enquanto os mais jovens Mignone e Camargo Guarnieri foram pautados pela mentoria de Mario. Mignone, junto a uma formação musical robusta, tinha uma grande facilidade para mimetizar influências e espelhá-las em sua música. Nas curtas temporadas em que viveu na Europa, absorveu traços da música italiana, espanhola, francesa e russa, afastando-se, propositalmente, da argumentação germânica e adotando um estilo menos “filosófico” e mais sincronizado com critérios sociais. Dessa forma, sua música se torna mais ou menos apegada ao folclorismo ao longo das décadas, de acordo com a ascensão e queda dos períodos ditatoriais, incluindo uma fase predominantemente atonal nos anos 60. Num rasgo autodepreciativo, admite que sua música é fruto de influências que não consegue debelar e que, do alto de sua imensa capacidade técnica, pode escolher como quer compor sem ter de atender a uma agenda estética. Assim como acontece com Prokofiev ou Kurt Weill, a música de Mignone é lida em paralelo às forças históricas do século XX. Cem anos depois dessa discussão, sua música se engrandece e pode ser ouvida pelo que é, e não por sua relação de arrojo ou conformismo com a estética então vigente.

É o que acontece com os 12 Estudos para violão, compostos em 1970, num momento em que ele retoma uma ideia de nacionalismo da década de 1920, que soava fora de moda para a geração mais jovem. Hoje, essa fluência com que ele transita entre uma inspiração nostálgica, ingênua e/ou sentimental e um controle certeiro do desenrolar da composição faz desses estudos uma obra que reinventa o próprio gênero do estudo para violão, afigurando-se como uma resposta moderna ao conceito lisztiano de estudo transcendental.

Mignone considerava o violão um instrumento de seresta; seu interesse só foi atiçado pelo encontro, no Seminário Internacional de Violão de Porto Alegre, em 1970, com o professor Isaías Savio e o grande concertista Carlos Barbosa Lima, cuja carreira internacional já era estabelecida. Essa amizade inspirou o compositor já septuagenário a escrever estes 12 Estudos, entre agosto e setembro de 1970, bem como as 12 Valsas em Forma de Estudo, dedicadas ao Savio, várias obra mais curtas e o Concerto para Violão e Orquestra, poucos anos depois.

Inicialmente Mignone quis agregar um subtítulo a cada estudo, ideia que abandonou; somente no manuscrito permaneceram o no 7 como “Cantiga de Ninar” e o no 11, “ Spleen”. A esponja estilística involuntária age em praticamente todos os estudos. O no 1, que deveria se chamar “Homenagem a Tarrega”, evoca a melodia do 2o movimento da 4a Sinfonia de Brahms. Vários deles elaboram ritmos brasileiros (nos 3, 5, 6, 8 e 9), enquanto outros (10 e 12) evocam Chopin (o prelúdio no 4 e os estudos op.10 na 2 e 4, respectivamente). O de no 4 é um tour-de-force de alta virtuosidade; o no 3, por trás de um aspecto ingênuo, passa com fluidez de um discurso de choro carioca para figurações modais mais características da música nordestina ou caipira. O mesmo acontece no estudo no 9: esse diálogo entre o urbano e o regional, entre a erudição e a cultura popular, entre o histórico e o moderno é um dos aspectos mais instigantes dos estudos.

A coleção não obedece a uma organização tonal, mas há uma forte predominância do sol maior, que se espraia na escolha de tonalidades dos outros estudos, quase todos baseados nas cordas soltas do violão (exceto no 7 em fá sustenido menor e no 10 em fá menor). Há também uma alternância entre a forma ABA dos estudos de números par e as formas mais fluidas dos de número ímpar.

A Brazilian Song (Canção Brasileira) é uma obra que Mignone reaproveitou em outras ocasiões; esta versão foi publicada pela revista americana Guitar Review, editada também por Barbosa Lima. Já a atmosférica Lenda Sertaneja é uma reelaboração da Lenda Sertaneja no 7, para piano, composta em 1932; esta versão foi dedicada a Turíbio Santos, que, junto a Barbosa Lima, contribuiu para uma significativa ampliação do repertório brasileiro para o violão de concerto.

Repertório

01 Lenda Sertaneja
02 Estudo 01
03 Estudo 02
04 Estudo 03
05 Estudo 04
06 Estudo 05
07 Estudo 06
08 Estudo 07
09 Estudo 08
10 Estudo 09
11 Estudo 10
12 Estudo 11
13 Estudo 12
14 Brazilian Song

Créditos

Idealização: GuitarCoop
Gravado em: Estúdio Trampolim (São Paulo/SP)
Data: 4-6 Dezembro, 2020
Textos: Fabio Zanon
Tradução: David Molina
Produtor musical: Thiago Abdalla
Engenheiro de áudio: Ricardo Marui
Mixagem e masterização: Ricardo Marui
Design Gráfico: Eduardo Sardinha
Editoração: Patricia Millan
Fotos: Heloisa Bortz
Violão: Hermann Hauser III 2006
Cordas: Augustine Strings
Microphones: Neumann, DPA and Royer
Conversor: Apollo (UAD)
Pré-amplificador: Millennia

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