É um grande prazer dividir com vocês algumas de minhas peças barrocas prediletas! As peças deste disco representam uma variedade relativamente grande de estilos composicionais barrocos de várias das celebridades do período. Todos os compositores que aparecem aqui foram mestres não só da escrita musical, mas também de seus respectivos instrumentos. Espero que o espírito musical dessas peças tenha sido revivido aqui em meu instrumento querido, o violão clássico.
Domenico Scarlatti (1685-1757) foi um compositor italiano que passou grande parte de sua vida profissional trabalhando para as famílias reais portuguesa e espanhola. Scarlatti nasceu em Nápoles, no Reino de Nápoles, que naquele tempo pertencia à coroa espanhola. Apesar de seu instrumento ter sido o cravo, muitas de suas 555 sonatas para teclado incluem matizes guitarrísticos, como rasgueos ou dissonâncias que anunciam idiomas característicos do violão popular.
Foi o cravista e musicólogo Ralph Kirkpatrick que, em 1953, publicou uma edição de todas as sonatas de Scarlatti organizadas cronologicamente, edição que se tornaria preferida em relação à anteriormente publicada por Alessandro Longo em 1906. São dessas duas coleções que derivamos os números K (Kirkpatrick) e L (Longo). As duas sonatas que aparecem aqui, K.1 e K.322 funcionam muito bem ao violão em seus tons originais, e eu cresci ouvindo a K. 322 tocada por alguns dos meus heróis violonistas.
Membro de uma grande e respeitada família musical, François Couperin (1668-1733) teve o título “Le Grand” (“O Grande”) atribuído para o distinguir como a melhor e mais popular figura do clã Couperin. Em 1713 ele recebeu o privilégio real – que duraria vinte anos – de publicar suas obras, e começou a fazê-lo já com o primeiro de seus quatro volumes de peças para cravo, Piéces de Clavecin. É no segundo volume dessa coleção que encontramos a encantadora Les Barricades Mystérieuses (As barricadas misteriosas). É a quinta peça de sua Ordre 6éme de clavecin em si bemol maior. A peça foi composta em 1717 e tem a forma rondó, na qual o tema inicial retorna repetidas vezes, alternando com variações chamadas couplets. O título é ele mesmo um mistério, e há várias teorias sobre o seu significado. Minha teoria é que as barricadas se referem às notas ligadas que atravessam as divisões de compassos, criando uma sensação misteriosa de flutuação e irresolução. Mas, claro, essa é apenas uma teoria. Parte da graça é cada um usar a imaginação para encontrar uma interpretação própria. La Fanfarinette, “Pequena Fanfarra”, de Jean-Philippe Rameau (1683-1764) é uma peça cuja beleza me tocou após escutá-la pela primeira vez em um disco integralmente dedicado a Rameau interpretado pelo tecladista de jazz Bob James. É o quinto movimento da Suíte em lá menor/maior da coleção Nouvelles Suites de Piéces de Clavecin.
As três peças atribuídas a Robert de Visée (1650-1725) são a Ouverture de la Grotte de Versailles, de Jean-Baptiste Lully (1632-1687), La Muzette, do próprio Visée, e Les Silvains, de François Couperin, e chegam até nós através de uma antiga e gloriosa prática: o arranjo de músicas populares. O período barroco foi uma época de adaptabilidade, na qual compositores tomavam emprestado (ou roubavam) livremente ideias ou até peças inteiras uns dos outros e as reescreviam em seu próprio estilo. É como Lady Gaga cantar uma obra dos Beatles, por exemplo. Robert de Visée foi um renomado violonista, teorbista e violista da gamba das cortes dos reis franceses Luís XIV e XV. De Visée produziu arranjos de várias peças populares para o instrumento que hoje denominamos guitarra barroca e para a teorba escritas por celebridades da composição francesa. Apesar de ter quase o comprimento de um cravo, a teorba tinha o formato de um grande alaúde e continha uma amplitude maior de baixos. Ela também era utilizada no lugar do cravo em várias orquestras barrocas. Enquanto completava seu doutorado na Universidade da Califórnia em San Diego, Dr. Alexander Dunn, inspirado pelas composições de de Visée, decidiu arranjar todas as suas peças de teorba para violão. Nas palavras do arranjador:
“Sempre fui fascinado pela música francesa para cravo e para alaúde. Cheguei a estudar um pouco de cravo, e sempre adorei o elegante e refinado estilo francês dos séculos 17 e 18. Decidi escrever uma tese de doutorado sobre de Visée, examinar sua vida e circunstâncias musicais, e transcrever todas as suas obras para teorba da tablatura para a notação tradicional, fazendo certas adaptações para o violão clássico moderno. Achei que as peças para teorba seriam mais apropriadas para o violão porque o uso dos baixos mais graves e o som eram mais fáceis de reproduzir do que as texturas típicas da guitarra barroca francesa, que não podem ser traduzidas facilmente para os instrumentos modernos. Publiquei os arranjos de de Visée na Guitar Review em 1990 e também na Gitarre und Laute, onde também aparecem adaptações de François Couperin tais como arranjadas por Visée.”
Nascido na Alemanha, Georg Philipp Telemann (1681-1767) foi predominantemente autodidata em sua formação musical. Matriculou-se na Universidade de Leipzig para estudar direito durante um tempo, mas depois seguiu o sonho de se tornar compositor, contrariando os desejos de seus pais. Mais tarde ele iria ocupar importantes posições em vários lugares da Alemanha até se instalar em Hamburgo, em 1721. Ali ele prosperou como diretor musical de cinco das principais igrejas da cidade. Ele era muito amigo tanto de Handel quanto de J. S. Bach, e foi padrinho do segundo filho de Bach, Carl Philipp Emanuel. Quando Telemann morreu, em 1767, ele foi sucedido em Hamburgo por seu afilhado, Carl Philipp Emanuel Bach.
O Livro Guiness dos Recordes lista Telemann como o compositor mais prolífico de todos os tempos, com mais de 800 obras creditadas. É provável que ele tenha escrito mais de 3.000 obras, mas muitas foram perdidas com o passar do tempo. Dentre as peças que chegaram até nós estão os vários ciclos para instrumentos solo não acompanhados, como as 12 Fantasias para violino solo; as 12 Fantasias para flauta solo; as 12 Fantasias para viola da gamba solo, e as 36 Fantasias para cravo solo. Apesar de terem muitos movimentos, as Fantasias para violino são relativamente curtas. As transições entre os movimentos acontecem de maneira quase ininterrupta. A Fantasia No. 1 foi magistralmente arranjada para violão em lá maior por Carlo Marchione. A peça original estava em si bemol maior; o arranjador pede que o artista use um capotasto na primeira casa, elevando o tom para si bemol. Eu, porém, prefiro as ressonâncias do violão sem o capo, então a peça aparece aqui em lá maior.
Sylvius Leopold Weiss (1687-1750) foi o mais renomado alaudista alemão de seu tempo. Weiss foi certamente o mais prolífico compositor de peças para alaúde: quase 850 peças atribuídas sobrevivem dentre suas prováveis mais de mil composições, que incluem sonatas, suítes, obras de câmara e concertos.
Ele e Bach trabalharam na mesma época e se conheciam. Isso é importante para nós, violonistas, já que tudo o que Bach possa ter escrito para alaúde teria sido influenciado pelo estilo de tocar de Weiss. Assim, ao estudar e tocar as peças de Weiss, adquirimos melhor compreensão de como interpretar Bach ao violão.
O original é em ré menor, mas eu adoro a versão de Michael Lorimer em mi menor, gravada aqui.
Johann Jakob Froberger (1616-1667) nasceu em Stuttgart e foi um dos mais famosos compositores de sua era, antecipando Bach em ao menos uma geração. Froberger influenciou bastante o desenvolvimento da suíte de danças como forma musical ao agrupar várias danças juntas em uma série. Lamento, com a dedicatória: “Lamento sopra la dolorosa perdita Real Maestá di Ferdinando IV. Re de’ Romani” é uma Allemande profundamente bela, que serve como primeiro movimento de sua Suíte no.12 para cravo. Nela ele expressa toda a sua tristeza com a morte do Rei Ferdinando IV, que morreu inesperadamente de varíola em 1654. Diferente dos muitos tombeaux barrocos, este é em modo maior, insinuando um certo otimismo ou talvez uma capitulação diante do destino. Depois de descarregar todo o seu pesar na tumultuosa seção central, Froberger termina a peça com uma escala maior ascendente, que parece elevar a alma de seu amado rei aos céus em uma almofada de nuvens.
DOMENICO SCARLATTI
01 – Sonata in A major, K. 322 (arr. Tennant) 3’14
02 – Sonata in D minor, K. 1 (arr. Tennant) 3’22
FRANÇOIS COUPERIN
03 – Les Barricades Mysterieuses (arr. Tennant) 3’14
JEAN-PHILLIPE RAMEAU
04 – La Fanfarinette (arr. Tennant) 3’31
JEAN-BAPTISTE LULLY/ ROBERT DE VISEE
05 – Ouverture de la Grotte de Versailles (arr. Dunn) 3’59
ROBERT DE VISEE
06 – La Muzette (arr. Dunn) 4’34
FRANÇOIS COUPERIN/ ROBERT DE VISEE
07 – Les Sylvains (arr. Dunn) 4’42
GEORG PHILIP TELEMANN Fantasia No. 1 for solo violin (arr. Marchione)
08 – Largo 2’21
09 – Allegro 1’34
10 – Grave 1’10
11 – Allegro 1’39
SYLVIUS LEOPOLD WEISS Sonata/Suite No. 34 in E minor (arr. Lorimer)
12 – Prelude 1’49
13 – Allemande 3’30
14 – Courante 1’40
15 – Bouree 2’19
16 – Sarabande 2’15
17 – Minuet1, Minuet 2 1’56
18 – Gigue 2’03
JOHANN JAKOB FROBERGER
19 – Lamento (arr. Hoppstock) 4’18
TOTAL TIME: 53’17
Idealização: GuitarCoop
Gravação: Auditório Unibes Cultural / Estudio Giba Favery
Datas: 03,04,05 Junho/2015
Engenharia de Som: Ricardo Marui
Assistente de gravação: Henrique Caldas
Mixagem: Ricardo Marui
Masterização: Homero Lotito
Produção Musical: Everton Gloeden
Textos: Scott Tennant
Tradução: David G. Molina
Design Gráfico / Web: Eduardo Sardinha
Ilustração da capa: Jorge Ribeiro
Fotos: Eduardo Sardinha
Violão: 2010 Philip Woodfield, spruce-top: “Natalie”
Cordas: Savarez Red Cantiga/Cristal
Microfones: Royer SF-24, DPA 2006
Pré-amplificador: Millenia HV-3D
Monitoração: B&W 804
Agradecimentos: Minha mais profunda gratidão vai ao meu velho amigo Marcelo Kayath, por ter me convidado a fazer parte da família Guitar Coop; a Ricardo Marui e Henrique Caldas por me fazerem soar melhor do que de fato sou; a Everton Gloeden, por ser um produtor incrível; e a Lilah Kuhn por ter me recebido tão bem durante minha visita à São Paulo!