Este recital de dois violões afasta-se da cronologia e nos convida a abrir os ouvidos para os encontros fortuitos e as associações insuspeitas entre obras de diferentes estilos, postas juntas pelo deleite da comunhão entre intérpretes e ouvintes.
Claude Debussy, em seu livre-pensar musical, abriu novas avenidas para a composição moderna; uma das mais amplas é a da emancipação da cor e da inflexão. Cada nota de sua música docilmente exige precisão desses dois elementos, que frequentemente assumem preponderância em relação à melodia ou à forma. Cor e inflexão: elementos que definem a arte do violão e fazem de Debussy um alvo óbvio para a transcrição. A versão aqui ouvida cria uma envolvente névoa de quase-harpa-eólia na primeira Arabesque, e ressalta os timbres da música popular urbana na segunda (que aparentemente figurou em recitais de Andrés Segovia no início de sua carreira).
No repertório de piano, as Canções sem Palavras de Mendelssohn ocupam um lugar especial por atenderem a um lirismo doméstico que coincide com a emergência de uma nova classe média instruída. A cada par de anos, Mendelssohn publicava uma nova coleção de meia dúzia dessas pequenas peças, que rapidamente se tornaram excepcionalmente populares. Através delas, ele se tornou o que hoje chamamos de “influencer”, alguém capaz de determinar os rumos do gosto do público. Compositores-violonistas como Mertz e Regondi buscaram emular seu estilo; em sinal trocado, elas soam ainda mais líricas em transcrição para violão, com caracteres contrastantes de exaltação amorosa e inquietude.
O compositor italiano Mario Castelnuovo-Tedesco se via como uma continuidade do primeiro Romantismo dentro do século XX. A partir dessa premissa, ele desenvolveu um infalível senso de estilo que vai muito além do pastiche, alimentado por uma proficiência técnica em composição praticamente sem paralelo. Seu prestígio, hoje, reside em sua vasta produção para violão e em exuberantes trilhas sonoras de filmes de Hollywood. Além de centenas de obras solo, Castelnuovo escreveu, em 1962, Os Violões Bem Temperados. O título, tomado emprestado de Bach, revela o óbvio: são 24 Prelúdios e Fugas, em todas as tonalidades maiores e menores, escritos para o grande duo de violões da época, formado pelo casal Ida Presti e Alexandre Lagoya. O no 12 em dó maior não só rememora o estilo de chasse, tão caro aos românticos, mas traz uma fuga cujo tema é derivado do prelúdio; o de no 4 em mi maior combina um estudo em harpejos, talvez inspirado no estudo op.25 no 1 de Chopin, com uma fuga em forma de dança barroca. O prelúdio, em particular, constitui, pela necessidade de sincronia num harpejo contínuo e rubato, um verdadeiro desafio à arte de se tocar em duo.
Ernesto Halffter pertence a uma família de músicos espanhóis, ativa por várias gerações até os dias de hoje. Aluno de Falla e integrante do grupo chamado de Geração de 1927, dispersado durante a Guerra Civil Espanhola, Halffter viveu por muitos anos em Portugal. Como muitos de sua geração, admirava o passado musical espanhol e as obras de Domenico Scarlatti, e as encarava como fonte de uma estética nacional no século XX – atitude compartilhada por seus colegas de 1927 e por Falla -, que informa também seu primoroso concerto para violão e orquestra. As duas danças desta gravação estão entre suas obras mais conhecidas e tiveram origem no scarlattiano ballet Sonatina. O próprio Halffter produziu uma versão de piano da partitura orquestral, chamando-a de Suite de las Doncelas, raramente tocada integralmente. Esta versão para dois violões, de alguma forma, faz com que estas encantadoras páginas retomem sua dimensão orquestral.
Ao contrário de Halffter, Federico Moreno Torroba permaneceu na Espanha ao longo do turbulento século XX. Ele se tornou o mais popular compositor de zarzuelas de seu tempo; muito de seu renome internacional, entretanto, reside nas obras para violão, dezenas delas dedicadas a Andrés Segovia, que raramente dava um concerto sem incluir obras de Torroba. Na segunda metade do século XX Torroba também travou amizade com a família Romero, que formava um excelente quarteto de violões, para o qual escreveu a suite Estampas em 1979, em oito movimentos; a versão para duo dos seis movimentos que ouvimos aqui foi feita por Fernando de Lima. De acordo com o título, cada quadro evoca um momento da alma espanhola. Sem a pretensão de escrever música de profundidade, Torroba imbuía toda sua obra de violão de um natural poder evocativo e uma aura sedutora.
Se as grandes obras de Tchaikovsky dificilmente se prestariam a uma versão para violões, suas inúmeras e pouco conhecidas miniaturas para piano, herdeiras diretas da introspecção de Schumann, ganham ainda mais intimidade, charme e cor melancólica nesta versão para violões. As Seis Peças op.19, uma encomenda do editor russo do compositor, contém seis pequenas peças com um caráter predominantemente sonhador e um sabor de folclore aqui e ali.
O Duo Siqueira Lima já deixou para trás as questões mundanas da técnica do violão e os problemas de sincronia de um duo; isso não é preocupação para quem já está na categoria dos ícones culturais, que formam novos hábitos de escuta e impressionam a imaginação dos ouvintes. Ouvindo estas obras se sucederem com elegância e inteligência, com rigor e sedução, não podemos deixar de pensar que os bons tempos voltaram. Fabio Zanon
Composto pelos violonistas Cecilia Siqueira e Fernando de Lima, o duo se consolidou em 2006, com o lançamento do disco “Lado a Lado” – com um repertório próprio e arranjos originais. O Duo Siqueira Lima conquistou diversos prêmios, entre os quais destacamos “Profissionais da Música 2015”, no Brasil e o “Brazilian International Press Awards 2014”, nos Estados Unidos. São aclamados como um dos maiores duos de violões em atividade, solicitados para os principais festivais dedicados ao instrumento. Apresentam-se nos grandes centros musicais e salas de grande prestígio como a Concertgebouw de Amsterdam, Lincoln Center de Nova Iorque, New World Center em Miami e Sala São Paulo na cidade de São Paulo, Brasil.
CLAUDE DEBUSSY
[01] Arabesque No 1 * 4’19
[02] Arabesque No 2 * 3’49
FELIX MENDELSSOHN
[03] Songs Without Words op.53 No 2 * 2’38
[04] Songs Without Words op 30 No 2 * 2’08
MARIO CASTELNUOVO-TEDESCO
From The Well-Tempered Guitars
[05] Prelude and Fugue in C Major No 12 3’03
[06] Prelude and Fugue in E Major No 4 4’21
FEDERICO MORENO-TORROBA Estampas *
[07] Bailando un Fandango Charro 1’47
[08] Remanso 3’01
[09] La Siega 1’30
[10] Fiesta en el Pueblo 1’33
[11] Amanecer 1’45
[12] La Boda 2’28 ERNESTO HALFFTER
[13] Danza de la Pastora * 3’41
[14] Danza de la Gitana * 4’04
PYOTR ILYICH TCHAIKOVSKY
From Six Pieces Op. 19
[15] Rêverie du soir No 1 * 4’09
[16] Nocturne No 4 * 3’16
* Arrangements by Fernando de Lima
Idealização: GuitarCoop
Gravado em: Sala Boa Vista, São Paulo, Brazil
Datas: Fevereiro de 2019
Engenharia de Som: Ricardo Marui
Produção Musical: Henrique Caldas
Edição: Henrique Caldas/Duo Siqueira Lima
Mixagem: Ricardo Marui
Masterização: Ricardo Marui – Pinus Studio
Textos: Fabio Zanon
Design Gráfico: Eduardo Sardinha
Fotos: Luis Gaioto
Editoração Eletrônica: Patricia Millan
Violões: Sérgio Abreu (Cecilia Siqueira: 2013, Fernando de Lima: 2014)
Cordas: Augustine Regals Blue
Microfones: Royer SF-24, DPA 2006
Sistema de Gravação: Metric Halo LIO-8
Pré-amplificador: Millenia HV-3D
Cabos: Van den Hull D-102
“Este álbum é dedicado á memoria de meu amado pai, Julio Siqueira. Meu primeiro professor de violão a quem devo minha paixão pelo instrumento e pela música. Sua luz continua a me guiar, inspirar e abençoar sempre. Agradeço a Deus pela sua vida e pelo amor eterno que nos une”.
Cecilia Siqueira
Agradecimentos: Raquel Franco, Fabio Zanon, Ricardo Marui, Ricardo Dias, Sergio Abreu, Marcelo Kayath, Henrique Caldas e Thiago Abdalla.