Em meados da década de 1970, Olga Praguer Coelho se mudou de Nova York para o Rio de Janeiro. A menina da vizinha ficou completamente hipnotizada pelas histórias da Olga: “Dona Olga pegava um objeto de sua casa e contava como o adquiriu e sua procedência. Fiquei fascinada com suas histórias”.
Enquanto tecia a teia de suas experiências ao redor da menina deslumbrada, Olga recorria às lembranças de uma vida surpreendentemente rica em aventuras e conquistas. Nascida em Manaus, em 1909, mudou-se aos três anos para Salvador, onde seu pai médico aceitara uma colocação. Aos 12 anos, a família foi para o Rio de Janeiro, que forneceu o solo e a nutrição para o florescimento de sua arte e foi palco de seus primeiros sucessos. Olga estudou piano com a mãe, aluna do grande mestre, o pianista português Vianna da Motta, mas foi a música folclórica – e, especialmente, o violão clássico – que a inspirou. Estudou canto com várias professoras, entre elas a célebre meio-soprano Gabriela Besanzoni, e violão com Patrício Teixeira, que também cantava. As primeiras apresentações aconteceram na Rádio Clube do Brasil, em 1927. Seguiram-se os concertos, a fama se espalhou, e em dois anos ela estava na capa de O Violão, revista dedicada ao instrumento. Suas primeiras gravações na Odeon são de 1929, e durante
a década seguinte, vários discos foram lançados.
Seu primeiro sucesso internacional foi em 1935, em Buenos Aires, onde se tornou uma sensação. Meses depois, ao desembarcar no Rio de Janeiro, viu-se rodeada por repórteres. Logo após foi uma das estrelas do show de abertura da rede Rádio Tupi. Em agosto de 1936, Olga voou no Graff Zeppelin do Rio de Janeiro à Alemanha, para assistir às cerimônias de abertura das Olimpíadas de Verão em Berlim e lançar sua primeira turnê pela Europa, como recém-nomeada Embaixadora da Música Brasileira pelo Presidente Getúlio Vargas (1882-1954). Os jornais do Rio relataram suas apresentações triunfais em toda a Europa: Alemanha, Itália, França, Áustria, Hungria, com a presença de Bela Bartok, Bélgica e Grã-Bretanha. Apresentou-se algumas vezes na radio alemã – algumas dessas gravações constam deste CD. Olga voltou todos os anos à Europa e deu concertos em quase todos os países do continente. Apareceu na recém-surgida TV da Alemanha e Grã-Bretanha. Seu livro de autógrafos registra o reconhecimento de grandes escritores europeus, artistas e figuras públicas da época.
Em 1939, ela e o marido, Gaspar Coelho, viajaram à Nova Zelândia, Austrália, Cingapura, Java e África do Sul. Seus concertos ganharam críticas entusiasmadas nos jornais. Nos primeiros dias da Segunda Guerra Mundial, o casal retornou ao Rio de Janeiro. O próximo período da vida de Olga começa em 1941, com a mudança com o marido para Nova Iorque. Apresentou-se na Casa Branca para Eleanor Roosevelt, que a encheu de elogios em sua coluna de jornal. Em seguida, foi contratada para cantar duas vezes por semana em um programa da rádio CBS, transmitido em toda América do Norte e por ondas curtas ao Brasil – parte da política da boa vizinhança e em conexão com os esforços da guerra. A música La Cucaracha, de um desses programas, também está presente neste CD.
Em novembro de 1943, Olga conheceu Andrés Segovia, que viera a Nova Iorque para reativar sua carreira na América do Norte. Floresceu um romance, e ambos deixaram seus respectivos cônjuges e estabeleceram uma vida juntos durante quase vinte anos. Segovia criou muitos arranjos para canto e violão dedicados a Olga e, com ele, ela aperfeiçoou ainda mais sua técnica já primorosa, atingindo um alto padrão de qualidade. Surgiram outras gravações dela nos Estados Unidos e na Europa — por Hargail, RCA e Parlophone. Algumas delas podem ser ouvidas aqui.
Após a guerra, Olga retomou sua carreira internacional. Ela e Andrés comparti-lharam o palco numa única transmissão, em 1947, na rádio NBC em Nova Iorque. Deve-se ressaltar que, no mesmo ano, Olga foi a primeira violonista a usar cordas de nylon no palco, em vez de cordas de tripa, no seu recital no Town Hall em New York, em 21 de fevereiro.
Seu primeiro LP mostrando sua nova técnica de violão e ampliando seu repertório foi gravado pela Vanguard, na Europa, em 1954. Sua última gravação em LP, pela Decca, data de 1960. Olga voltou triunfalmente a Buenos Aires em 1971, local de seu primeiro successo internacional. Em meados da década de 1970 ela havia retornado ao Rio para morar nas Laranjeiras, em um prédio construído no terreno da casa da família. Olga continuou a atuar local e internacionalmente e nunca teve uma “aposentadoria” oficial. Deu apoio e solidariedade a uma nova geração de artistas brasileiros, sua personalidade fulgurante atraía inúmeros deles, pelos quais é lembrada com amor e carinho.
Com o passar do tempo, seu perfil público eclipsou-se e Olga, a estrela que tanto brilhava, foi praticamente esquecida. Entretanto, em 2004 houve um breve ressurgimento de seu passado ilustre quando Olga, como uma estrela cadente, recebeu a Ordem do Mérito Cultural do Presidente da República. Ela morreu no Rio de Janeiro, em 25 de fevereiro de 2008 com 98 anos.
Agora, uma década depois, a compilação de músicas lançadas neste CD oferece uma perspectiva da arte única de Olga e torna a revelar uma das maiores cantoras e violonistas de todos os tempos. Uma edição completa de suas gravações está sendo preparada, bem como uma biografia relatando sua vida extraordinária, e uma edição fac-símile das joias musicais dos arranjos de Andrés Segovia a ela dedicados.
Os concertos de Olga refletiam seu eclético interesse musical. Embora firmemente enraizada na pátria brasileira, seus recitais reuniam musicas de várias procedências. Cantava em vários idiomas – português, espanhol, italiano, francês, inglês e até maori.
A escolha e sequência das músicas do presente CD respeitam as desses recitais. Começamos com músicas brasileiras gravadas ao longo de sua carreira. Seguem-se músicas em espanhol de meados da carreira, da Colômbia, do México e da Espanha – incluindo obras de Manuel de Falla (1876-1946) e Andrés Segovia (1893-1987). Em seguida, retornamos ao Brasil. Apos rápida estada na Argentina, vêm as canções europeias do século XV ao XVIII, da França, da Espanha e da Itália, e o conjunto de obras do final da carreira, que traz mais uma vez músicas brasileiras, os “maiores sucessos”, com versões de conhecidos clássicos folclóricos.
O “recital” inicia com A Mosca na Moça, embolada do nordeste do Brasil, que com seu ritmo acelerado se tornou o primeiro sucesso de rádio de Olga, no Rio de Janeiro. O admirável lundu Virgem do Rosário, traduz o sentimento do povo africano escravizado e traz consigo as raízes do samba. Em 1939, Olga teve uma breve participação no filme Varanda dos Rouxinóis, cantando e tocando essa música em uma boate em Lisboa. Segue-se a Cantiga Ingênua, bem romântica, melodia criada por Olga para um poema de Gaspar Coelho (1898-1986), em comemoração ao seu casamento. Bahiana, música típica da Bahia, é seguida por Róseas Flores, modinha sentimental do século XIX, que consta como a primeira música brasileira surgida com a chegada da Corte Portuguesa.
O grupo em espanhol começa com Agáchate el Sombrerito, um bambuco, valsa típica colombiana. La Cucaracha, com seu significado político oculto, tornou-se popular entre as forças rebeldes e governamentais durante a Revolução Mexicana do início do século XX. Uma melodia popular nos leva à Espanha: Canción Andaluza, num arranjo para canto e violão do andaluz Andrés Segovia, dedicado a Olga. E há ainda duas das Siete Canciones Populares Españolas de Manuel de Falla, também com arranjo de Segovia para Olga: Asturiana, canção de lamento popular de Astúrias, norte da Espanha,
e Nana, canção de ninar andaluza, com forte influência oriental.
As próximas três músicas nos fazem retornar ao Brasil. O Rei Mandou me Chamá, adaptada em 1942 por Heitor Villa-Lobos (1887-1959), tem a influência dos escravos do Recôncavo Baiano. Meu Limão, Meu Limoeiro, coco de roda escrito por José Carlos Burle (1910-1983), alcançou rapidamente o status de clássico popular. Dança do Caboclo, de Hekel Tavares (1896-1969), escrita em 1934, é baseada em um texto popular do nordeste do Brasil.
Depois, um aceno a Buenos Aires – onde Olga teve seu primeiro sucesso internacional – com La Mulita. Essa canção folclórica argentina fala de um menino que sobe a montanha, em sua mula, para encontrar a amada. O programa retorna à velha Europa com a música seguinte: do século XVIII, C’est Mon Ami, de Marie Antoinette (1755-1793), aluna de Gluck, traz letra de Jean-Pierre Claris de Florian (1755-1794). Ojos Morenicos, villancico do século 17 de Pedro Escobar (1465-1535), é seguido pela ária barroca Se Florindo è Fedele, de Alessandro Scarlatti (1660-1725), extraído da ópera La Donna Ancora è Fedele.
Encerramos a seleção no Brasil, com a modinha do século XIX, Casinha Pequenina, com arranjo para canto e violão de Andrés Segovia. A toada Banzo, de Hekel Tavares com letra de Murilo Araújo (1894-1980), reflete a saudade sentida pelos africanos escravizados no Brasil colonial. Em seguida, vem a famosa Azulão, poema de Manuel Bandeira (1886-1968), musicado por Jaime Ovalle (1894-1955). A penúltima faixa traz o evocativo choro Cordão de Prata, de Brasílio Itiberê (1896-1967). Enfim, temos Xangô, canto de candomblé coletado por Heitor Villa-Lobos, ao qual Olga imprime intensa selvageria e uma expressão diabólica, batucando o ritmo no violão enquanto canta, e unindo-nos num transe.
Sua arte vem da combinação única de sua voz bonita, treinada e versátil, musicalidade incomparável, habilidade interpretativa e impecável acompanhamento ao violão clássico. Convidamos o ouvinte a apreciar, no primeiro lançamento em quase sessenta anos, a maravilhosa arte de Olga Praguer Coelho.
Popular Brazilian motif/Odeon 10514/December 29, 1929/Olga Praguer Coelho, guitar
Popular Brazilian motif, adapted by Olga P. Coelho/Victor 34042/April, 1936/R. Guimarães & João Nogueira, guitars
Olga P. Coelho & Gaspar Coelho/Victor 34056/ May, 1936/ Pereira Filho & Luiz Bittencourt, guitars
Olga P. Coelho & Eduardo Torinho/Victor 34056/May, 1936/Irmãos Carolino, guitars
Popular Brazilian melody, adapted by Olga P. Coelho/Deutscher Rundfunk broadcast/November 17, 1936/Olga P. Coelho, guitar
Traditional Colombian song, arranged by Jorge Añez/Deutscher Rundfunk broadcast/May 31, 1938/Olga P. Coelho, guitar
Traditional Mexican song/CBS Radio broadcast/January 29, 1942/Olga P. Coelho, guitar
Traditional Spanish song, arranged by Andrés Segovia/Hargail MW 700/1944/Olga P. Coelho, guitar
Manuel de Falla, arranged by A. Segovia/Parlophone RO 20580/1949/Olga P. Coelho, guitar
Manuel de Falla, arranged by A. Segovia/Hargail MW 700/1944/Olga P. Coelho, guitar
Folkloric Brazilian song/Parlophone RO 20599/1949/Olga P. Coelho, guitar
José Carlos Burle/RCA Victor 26-9018/1947/Olga P. Coelho, guitar
Hekel Tavares/Parlophone RO 20599/1949/Olga P. Coelho, guitar
Francisco Amor/RCA Victor 26-9019/1947/Olga P. Coelho, guitar
Marie Antoinette & Claris de Florian, arranged by Andrés Segovia/Vanguard VRS 7021/1954/Olga P. Coelho, guitar
Spanish Renaissance villancico by Pedro de Escobar, arranged by Andrés Segovia/Vanguard VRS 7021/1954/Olga P. Coelho, guitar
Alessandro Scarlatti, arranged by Andrés Segovia/Vanguard VRS 7021/1954/Olga P. Coelho, guitar
Popular Brazilian Song/Decca DL 10018/1960/Olga P. Coelho, guitar
Hekel Tavares & Murilo Araújo/Decca DL 10018/1960/Olga P. Coelho, guitar
Jaime Ovalle/Decca DL 10018/1960/Olga P. Coelho, guitar
Brasilio Itiberê/Decca DL 10018/1960/Olga P. Coelho, guitar
Traditional Brazilian chant/Decca DL 10018/1960/Olga P. Coelho, guitar
Miguel Praguer Coelho: Texto, pesquisa, notas nas canções, traduções de e para o português
Jack Silver: Pesquisa, fotos, esboço biográfico, digitalização e texto
Sergio Abreu & Ricardo Marui: Edição e masterização
Thiago Abdalla & Ricardo Marui: Restauração de arquivos sonoros
Sheila Shapira-Cortez: Pesquisa e restauração de imagens
Ben Scarcelli (Audio Basics): Limpeza de discos
Robert Trenholm: Cessão de fonogramas de sua coleção
Ricardo Dias: Projeto gráfico
Eduardo Sardinha & Patricia Millan: Editoração / Web Design
Janaina Rossi Moreira: Revisão em português
Eva Gulla: Revisão do texto em inglês
Crédito das fotos: CBS publicity photo, New York, c. 1953/Published in Guitar Review/Sergio Abreu/Dr John Richter/Ann e Eli Kassner
Agradecimentos: Cópias digitais de gravações brasileiras, 78 RPM, por Olga P. Coelho: A Mosca na Moça, Virgem do Rosário, Bahiana, Cantiga Ingênua, Instituto Moreira Salles/Coleção Humberto Franceschi.
Equipe: Flávio Pinheiro, Bia Paes Leme, Euler Gouvêa, Elias Silva Leite, Fernando Krieger, Mario Tavares, Ana Carolina Chaves, Renato Alves.