Há intérpretes que conquistam um público numeroso por meio de uma avantajada capacidade de comunicação, personalidade e carisma. Entre esses, há os que, além disso, despertam o assombro – e uma ponta de inveja – em seus próprios colegas, pelo comando artesanal total, perfeitamente equilibrado e aparentemente infalível de seus instrumentos. Em suas mãos, cada obra é burilada ao extremo e tem um caráter próprio; cada som tem uma intenção e um predicado; o instrumento parece adquirir pureza e translucidez irreais. Estamos falando de um Michelangeli, um Heifetz, um Zimerman. E do Duo Abreu. A biografia do Duo Abreu já foi narrada muitas vezes, mas sempre é bom lembrar que sua carreira internacional foi curta demais, de 1968 a 1975, ano em que Eduardo abandonou a profissão musical. Sergio continuou como solista, mas a partir de 1978 começou a construir violões, atividade à qual passou a se dedicar integralmente depois de um ano sabático em 1981, do qual nunca retornou. Nesse exíguo período, os dois irmãos tocaram nas séries de câmara mais importantes da Europa, dos EUA e da Austrália, e gravaram três LPs, pela CBS e pela Decca; Sergio ainda gravou um LP solo. A combinação de dois violões sempre fora tratada como um encontro fortuito ou uma extensão da relação entre professor e aluno; somente na década de 1950 o Duo Presti-Lagoya solidificou a ideia de duo como um trabalho de alta categoria técnica, com repertório variado e denso. Ida Presti morreu prematuramente em 1967, o que criou um vácuo; o Duo Abreu surgiu justamente no momento de preenchê-lo, mas com uma proposta bem diferente. Eles foram formados pela professora argentina Adolfina (conhecida pelo apelido “Monina”) Távora, cujo método de ensino espelhava o treinamento integral até então reservado a prodígios do piano e do violino. Percebendo a natureza inusitada do talento dos rapazes, ela estabeleceu altos padrões de resolução técnica, estudando o repertório sem prazo para atingir a perfeição; encorajou-os a buscar uma formação musical ampla e a travar contato com os maiores músicos; persuadiu-os a evitar escutar outros violonistas – para que não houvesse o risco de imitação – e a criar uma autonomia de pensamento musical por meio do conhecimento íntimo das partituras sinfônicas, de câmara e de ópera. Cuidou ainda da administração da carreira deles, impedindo a exploração prematura de seu talento. Talvez ela tenha regado uma planta já predisposta a crescer nessa direção; não foi somente um treinamento, foi a construção de uma cultura musical.
Quando de seus primeiros concertos na Inglaterra,ficou claro que os dois irmãos já nasciam maduros. Ao contrário do Presti-Lagoya, eles inseriam, em suas apresentações, solos intercalados com os duos. Sua maneira de tocar era sóbria, aristocrática, equilibrada, com planos de dinâmica claramente estabelecidos e sonoridade bem modulada, mas por baixo da aparência glacial a música entrava em combustão; a certeza técnica só encontrava paralelo em outro jovem portento, John Williams, mas com maior pureza de emissão. Quando necessário, os violões eram “domados”, e nem com um esforço consciente o ouvinte poderia perceber as desigualdades inerentes à digitação do violão; mas, quando o repertório exigia, o colorido era explorado com exuberância. Ouvindo sua discografia e numerosas gravações informais, percebe-se nesse curto espaço de tempo um ganho de maturidade musical ano a ano. As minúcias ficam cada vez mais integradas a uma visão global, e o controle fino de andamento e fraseado reflete a capacidade de análise e gera um discurso mais elástico. Por isso é tão importante ouvirmos este recital, gravado em Londres em 1970 para a BBC. O repertório foi tocado no dia 18 de outubro no Queen Elizabeth Hall – eles voltariam a essa mesma sala no dia 28 para tocar a estreia britânica do Concerto para dois violões de Castelnuovo-Tedesco com a Orquestra de Câmara Inglesa. Nos dias 26 e 27 gravaram os concertos de Castelnuovo e Santórsola com a mesma orquestra nos estúdios da Abbey Road; a gravação para a BBC deve ter sido feita por volta dessas datas.
Vale lembrar que a rádio clássica da BBC reflete o caráter de “aqui e agora” jornalístico da instituição. Sua programação é fundamentada em transmissões ao vivo e gravações exclusivas feitas em seus estúdios, onde os artistas aparecem com o repertório do momento. Seu arquivo conta com milhares de preciosidades – gravações únicas de todos os maiores intérpretes e compositores que passaram por Londres em oito décadas. Portanto, apesar da alta qualidade sonora, essas gravações são feitas sem maquiagem de estúdio, numa situação de concerto, mesmo quando não existe a presença de um público. Não havia muita margem para vários takes de retoque técnico; o que se ouve é um retrato fiel do que os artistas faziam ao vivo. Isso permite que o impacto da imaculada beleza dessas gravações seja ainda maior. O repertório é típico do Duo: transcrições de Rameau, Scarlatti e Weiss; a faceta latina representada pela Sonatina de Ponce; o melhor do repertório original de duo por Castelnuovo-Tedesco e uma obra moderna, sem experimentalismos, de Burkhart. Em 1970 o movimento de interpretação historicamente informada ganhava fôlego e, com isso, pianistas e maestros restringiam seu repertório barroco a fim de repensar suas convicções; o Duo Abreu chegou a uma síntese, onde uma visão límpida, de longas linhas, rigorosamente rítmica, é combinada à minúcia da articulação e da ornamentação. Castelnuovo-Tedesco também demonstra essa capacidade de reconciliar ideias contrastantes, em que uma maneira objetiva de lidar com a forma da obra é casada com o virtuosismo e o arrebatamento. Sergio acredita que a magia da sonoridade robusta, expressiva e cristalina, apolínea quando comparada aos dionisíacos Segovia e Julian Bream, se deve à simbiose do Duo com os excepcionais instrumentos que, à época, pertenciam a Monina Távora: ele tocava num Hauser 1930, que ela obtivera de Segovia em 1935, e Eduardo usava um Santos Hernandez 1920, adquirido da viúva do luthier em 1955. O Duo usou essa combinação de 1965 a 1973, quando o risco de danos durante as viagens levou à decisão de se adotar um par de Rubios.
A imprensa da época atesta o estrondo que a chegada dos irmãos provocou num cenário de violão ainda dominado, em larga escala, por Segovia e seus discípulos: aqui estavam artistas que extrapolavam o círculo dos aficionados e elevavam a qualidade artística do violão a um novo patamar. Seus discos continuaram em catálogo por mais uma década, mas a brusca interrupção da carreira do Duo levou a um gradual esquecimento: aqueles que os ouviram ao vivo têm hoje 55 anos ou mais. A geração atual adotou outras referências e não faz ideia de que o aparato técnico e musical que é esperado hoje havia atingido um de seus pináculos já nos anos 1960. Essa é uma grande lacuna da nossa cultura musical, que a GuitarCoop agora preenche ao lançar o Duo Abreu em versão digital pela primeira vez.
Fabio Zanon
1/6 – Six Pieces from the Book of 1726 14’25
Allemande – Le Rappel des Oiseaux – Rigaudon –
Musette en Rondeau – Le Lardon (Menuet) – Les Cyclopes
(arr. Sergio Abreu) – Duo
7 – Toccata K 141 (arr. Sergio Abreu) – Duo 3’51
8 – Passacaglia in D major (WeissSW 18.6, London Manuscript) – Solo: Sergio Abreu 4’13
9 – Sonata in G Major K 391 – Solo: Sergio Abreu 2’16
Campo – Copla – Fiesta – Solo: Eduardo Abreu 8’51
13/16 – “Les Guitares Bien Temperées” 9’37
Prelude and Fugue in E Flat Major Op. 199 No21
Prelude and Fugue in C sharp minor Op.199 No 7 – Duo
17 – Toccata – Duo 4’06
Produção: GuitarCoop
Gravação: BBC Studios, Londres
Data: Outubro, 1970
Edição: Sergio Abreu
Remasterização: Ricardo Marui
Produção Musical: Sergio Abreu
Design: Ricardo Dias
Foto da capa: Retrato sobre cartolina cortado a mão sobre foto de Karen Tweedy Holmes
Demais fotos: arquivo pessoal de Sergio Abreu
Editoração: Eduardo Sardinha
Textos:
Fabio Zanon
Revisão em Português:
Janaina Rossi Moreira/Thiago Abdalla
Violões:
Hermann Hauser 1930
Sergio Abreu no Duo,
Sergio e Eduardo nos solos
Santos Hernandez 1920
Eduardo Abreu no Duo Coleção Sergio Abreu
Agradecimentos:
Vicente Paschoal
Basil Douglas (in memoriam)
Adolfina Raitzin de Távora “Dona Monina” (in memoriam)