Egberto Gismonti — compositor, amigo, mentor

Na ocasião de sua aposentadoria, há alguns anos, Julian Bream gracejava: “tudo o que precisamos agora é de uma sonata de Mozart!”. Trata-se de uma enorme provocação para um violonista clássico, uma vez que ela brinca com uma de nossas maiores frustrações: nós adoraríamos tocar Mozart, mas não o fazemos! Ao longo da história do violão, violonistas têm tido uma fixação por Mozart mais do que por qualquer outro compositor (com a óbvia exceção de Bach, e, para um número crescente de nós, de Haydn). Nós, violonistas, sentimos que Mozart e o violão foram feitos um para o outro, como se cada um de nós pudesse escutar, em nosso ouvido interior, o som produzido por tal encontro: isto é, um encontro entre a transparência “luminosa” das texturas de Mozart e a correspondente sofisticação e nitidez da paleta tonal do violão.

É claro que a “obra para violão” de Mozart é apenas uma fantasia, uma vez que ele não conheceu o violão nem escreveu para o instrumento. É importante notar, entretanto, que durante o primeiro florescimento do violão clássico vienense, no começo do século 19, compositores-violonistas se dedicaram a escrever obras “mozartianas,” uma tentativa aparentemente urgente de compor a obra de violão que Mozart talvez tivesse escrito; mas – a despeito das belas peças que essa tendência inspirou – não surpreende que o gênio de Mozart tenha permanecido incapturável. Por outro lado, as gerações seguintes de violonistas recorreram, ao menos de vez em quando, a transcrições de Mozart; porém, novamente, a mágica de suas obras permaneceu fugidia e, a despeito de certos arranjos bem sucedidos de movimentos isolados, Mozart não se tornou parte determinante do repertório violonístico. Ao contrário de Haydn, por exemplo, cuja maioria das 62 sonatas para piano se adapta surpreendentemente bem ao violão, transcrições de Mozart frequentemente soam desajeitadas, o que é especialmente audível nas sonatas de maior envergadura. Dito isto, creio que certas exceções à regra finalmente estão começando a emergir.

Minha porta de entrada à obra de Mozart ao violão surgiu na verdade por meio de Bach, ou, para ser mais preciso, por meio da concepção de Mozart sobre a música de Bach. Mozart teve o seu “ano Bach” em 1782, quando se deparou pela primeira vez com um vasto número de obras de J. S. Bach e, como resposta, compôs uma série de obras no “estilo-Bach.” Por sorte, uma dessas peças, a Suíte Barroca em dó maior para cravo, revelou-se uma candidata perfeita para transcrição, especialmente a sua “Allemande”. Esse movimento prende imediatamente a atenção de violonistas e alaudistas por sua semelhança marcante com a “Allemande” da Primeira Suíte de Bach para alaúde. De fato, ela nos faz indagar se Mozart não teria visto a obra e a tomado conscientemente como ponto de partida. Em todo caso, optei por colocar as duas allemandes lado a lado para enfatizar tanto as semelhanças como as diferenças entre elas, pois Mozart atinge algo paradoxal: soa em parte como Bach, mas ainda assim não deixa de ser totalmente Mozart!

Escrita em fevereiro de 1789, a K.570 é a penúltima sonata de Mozart para piano. Ela é vista por muitos como a mais importante sonata para piano escrita pelo compositor, e há nela, de fato, um nível de tensão excepcional entre o refinamento dos meios empregados e a riqueza dos sentimentos expressos. A influência de Bach, coincidentemente, pode ser discernida uma vez mais, especialmente nos movimentos extremos, nos quais o contraponto bachiano é utilizado em trechos de transição e desenvolvimento. O movimento de abertura da Sonata (“Allegro”) também mostra influência direta de Haydn, já que faz uso de apenas um tema – marca registrada do compositor – ao invés dos tradicionais dois ou mesmo mais, especialmente em Mozart. O segundo e o terceiro movimentos têm, ambos, a forma rondó mas, previsivelmente, eles não poderiam ser mais distintos em gesto e expressão. O segundo movimento (“Adagio”) abre com um tema de despedida, que cita e desenvolve um clichê musical da época: a chamada do “posthorn”, símbolo de adeus (utilizado, depois, de maneira notável por Beethoven no começo da Sonata “Les Adieux.”). Como contraste, o terceiro movimento (“Allegretto”) abre com intensa compressão rítmica e expansão melódica, o que gera uma sensação paradoxal de animação e relaxamento de uma só vez. A força desses contrastes mascara, porém, a unidade latente do movimento, que tem como fonte – como tudo nessa Sonata – uma ideia única simples, anunciada por Mozart logo no início da obra.

As duas Suítes de Bach que concluem esta gravação foram supostamente escritas para violoncelo ou cello da spalla. No caso da Suíte n.5 para violoncelo BWV1011, porém, não podemos estar tão certos disso, pois ao passo que o original das Suítes para violoncelo se perdeu, temos acesso a um manuscrito preservado – assinado pelo próprio Bach – escrito expressamente para alaúde: o BWV995, anterior à versão mais antiga das Suítes para violoncelo. De fato, entre todas as obras de Bach para alaúde, esta é a que soa mais consistentemente idiomática no instrumento, mesmo que, para ser totalmente tocável, ela ainda demande um pouco de edição; Bach, porém, não era alaudista. É possível argumentar, então, que essa Suíte para alaúde não é um arranjo da Suíte para violoncelo, mas vice-versa (só não avisem os cellistas). De todo modo, o fato é que, com essa suíte, deparamo-nos com um exemplo claro do quão convincente Bach pode soar ao violão e ao alaúde, o que permite que arranjos para esses instrumentos das Suítes para violoncelo remanescentes sigam o exemplo do próprio Bach, como o faz a minha versão da sempre popular Primeira Suíte para violoncelo neste disco.

Tradução: David G. Molina

Músicas

João Luiz & Douglas Lora, Guitars

01. Frevo 04’50
02. Dom Quixote 04’50
03. Forrobodó 07’14
04. Bodas de Prata & Quatro Cantos 08’55
05. Sonhos de Recife 07’24
06. 7 Anéis 03’29
07. Karatê 04’50
08. A Fala da Paixão 06’36
09. Forró 09’33
10. Alegrinho no. 2 03’47

“Todo começo é involuntario.
Deus é o agente.
O heroe a si assiste, vário
E inconsciente.
À espada em tuas mãos achada
Teu olhar desce.
Que farei eu com esta espada?
Ergueste-a, e fez-se.“

Fernando Pessoa

Créditos

Brasil Guitar Duo plays Gismonti

Idealização: GuitarCoop
Gravado em: Fazenda Boa Vista
Data: Julho, 2018
Textos: João Luiz
Tradução: João Luiz
Arranjos: João Luiz
Produtor musical: Guilherme Oliveira
Edição: Ricardo Marui / Guilherme Oliveira
Engenheiro de áudio:: Ricardo Marui
Mixagem: Nobert Kraft
Masterização: Ricardo Marui
Design Gráfico e Web: Eduardo Sardinha
Fotos: Dario Acosta
Violão e cordas:
– João Luiz – Sérgio Abreu 2017 with Augustine Regal Blue strings
– Douglas Lora – Sérgio Abreu 2009 with Augustine Paragon
Microfones: DPA 2006, Royer SF 24, Neumann KM 184

Conversor Metric Halo LIO-8
Pré-amplificador: Millennia HV3-D

Agradecemos ao Egberto Gismonti, nossos familiares e amigos, Norbert Kraft, Marcelo Kayath e à toda equipe da GuitarCoop.

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