O Duo Siqueira Lima, com seu repertório variado e suas interpretações fortes, é uma das grandes referências atuais no cenário camerístico brasileiro e internacional. Os concursos de violão e a rotina de estudos colocaram os músicos lado a lado no palco e na vida: além de tocar em duo, se casaram!
Por Luis Stelzer – Revista Violão+
Fotos: Divulgação
Ganhador do Prêmio Profissionais da Música 2015 no Brasil e do International Press Award 2014 nos Estados Unidos, o Duo Siqueira Lima é um dos grupos de música de câmara de maior prestígio da atualidade. Cecilia Siqueira e Fernando de Lima são reconhecidos mundialmente tanto pelo virtuosismo técnico e carisma, quanto pelo perfeito entrosamento e por seus ousados e originais arranjos para dois violões. Desde 2003, percorrem o mundo realizando concertos nas principais capitais europeias e muitas cidades na América do Norte, bem como pela África e Rússia, já tendo se apresentado em salas de grande prestígio como Lincoln Center (Nova Iorque), New World Center (Miami) e Concertgebouw (Amsterdam), entre outros. Conheça um pouco mais da história da uruguaia e do mineiro, nesta entrevista exclusiva para Violão+.
Violão+: Como o duo Siqueira-Lima começou?
Cecília: Nos conhecemos no II Concurso Internacional de Violão Pro-Música/ SESC, em Caxias do Sul (RS) do qual participamos. Era um concurso de violãosolo e nós dois passamos para a final. Depois, empatamos no primeiro prêmio. E gostamos demais do jeito de tocar um do outro. O Fernando, como premiação, foi para a Europa. Eu, para os Estados Unidos, além de um concerto aqui em São Paulo. Nesse reencontro, no Conservatório Souza Lima, em janeiro de 2002, começamos a conversar sobre fazer alguma coisa juntos, tocar algumas peças. Já no final desse ano, gravamos um CD em duo, mas o disco se chama Cecília Siqueira e Fernando Lima, porque não tínhamos ainda a pretensão de formarmos um duo fixo.
Fernando: Não era nossa pretensão fazer uma carreira em duo. A gente ainda tinha aquela coisa voltada para o solo, estávamos estudando para isso, concursos e tal, com o repertório de violão tradicional erudito. Queríamos fazer o trabalho do duo principalmente para estarmos mais juntos.
Cecília: Eu no Uruguai, ele no Brasil… Fernando: Depois, virou casamento (risos).
Violão+: Isso leva um tempo…
Fernando: Falando assim, parece que é fácil (risos). Mas começou dessa maneira, com outras pretensões, não uma coisa de uma carreira, mas de se reunir e ficar junto. Demorou talvez uns três anos, de 2002 a 2005, para acharmos que era esse mesmo o caminho, que valia a pena realmente investir, levar mais a sério. O que estávamos fazendo começou a ter repercussão, até porque, desde o início, tivemos a ideia de não fazer as mesmas obras tocadas pelos irmãos Abreu, pelos irmãos Assad. Também nem sonhávamos em querer competir com esses dois, então, pensamos em fazer alguma coisa nossa. E comecei, nessa época, a fazer arranjos. O João Luiz, grande amigo, também escreveu arranjos para nós. Acho que por esse motivo começamos a ter um retorno positivo, porque era já um trabalho diferente.
Violão+: Quais os critérios para escolher repertório? Como vocês pensam um disco? Ele nasce simplesmente, ou ele vai tendo uma concepção anterior?
Cecília: Vai depender um pouco do repertório que estamos tocando. Não somos de ficar parados com um mesmo repertório, estamos sempre pensando em coisas novas. Em todo esse tempo, já 12 anos de duo, conseguimos juntar um repertório bastante amplo. Dentre essas músicas, tem aquelas que se encaixam melhor. Por exemplo, agora, estamos trabalhando um disco novo, que deve sair até o fim do ano. Achamos que o repertório combinou perfeitamente, conseguimos juntar muito bem. Fizemos, ano passado, um disco só de música barroca. Não tínhamos pensado em gravar um disco de música barroca, fomos juntando sonatas…
Fernando: Em concertos, geralmente, a gente faz um repertório variado, não tocamos apenas um compositor. Então, por isso, temos um repertório grande. Mas, na hora de gravar um CD, é diferente. Você quer montar um álbum, isso combina com aquilo… Então já gravamos dois discos só de música brasileira, com arranjos nossos. Fomos fazendo um grupo de músicas, e de repente: “ah, isso dá pra fazer um disco, vamos fazer mais algumas coisas, que completa”. E assim, vão surgindo os repertórios.
Cecília: Neste último, só há uma música pensada para fechar o disco. Esse disco vai ter as Bachianas 4 (Villa-Lobos) completa, os quatro movimentos. Nós tocávamos o primeiro, o terceiro e o quarto movimentos, não tínhamos feito o segundo. Pensamos: “para um disco, seria tão bom se pudéssemos fazê-la completa…”. O Fernando fez o arranjo e funcionou. Então gravamos!
Violão+: Há alguns anos, vocês tocaram um concerto maravilhoso, no Festival Leo Brouwer, no Masp, em São Paulo. Todos na plateia ficaram muito emocionados, foi fantástico. Como foi essa experiência para vocês?
Fernando: É uma pergunta muito interessante. Já se passaram quatro anos e a gente nunca falou muito sobre isso. Foi um momento muito especial na nossa carreira, aconteceu de maneira meio doida. A gente foi convidado para fazer o concerto no festival, para tocar com a Orquestra, mas que concerto vamos fazer? Na época, se sugeriu que fizéssemos o Concerto Madrigal, do Joaquin Rodrigo, que tínhamos tocado fazia pouco tempo, mas pediram outra coisa. Surgiu um concerto do Radamés (Gnattali). Ele tem um concerto para dois violões e orquestra, original, que fez para os Assad. Esse concerto que nós tocamos é o Concerto de Copacabana para violão-solo, e o Radamés o reescreveu para dois violões. Reescreveu tudo, até a parte da orquestra. Reformulou o concerto pensando em dois violões. Ele fez essa adaptação para os Assad, mas eles nunca chegaram a tocar no Brasil. Tocaram na Europa, há uns vinte anos. E a partitura? Ninguém tem a partitura. Na época, por sorte, estávamos em contato com os Assad. Fomos descobrir essa partitura. Os originais estavam em Bruxelas, na casa do Odair Assad. Daí, foram escanear isso, mandar pra gente, chegou um calhamaço enorme, da grade do concerto…
Cecília: E a grade chegou uns dois meses antes do concerto. Não dava para entender…
Fernando: Uma cópia, de onde a gente teve que tirar da grade os violões, estava muito ruim de ler. A gente teve que adivinhar e reescrever muita coisa. O Radamés, na época, escreveu trechos grandes em uníssono. Em violinos, você tocaria e ficaria bonito: há um trecho grande aqui e vamos colocar em uníssono. No violão, isso não funciona muito bem. Então, a gente praticamente recriou muita coisa. Sei que a cópia ficou pronta um mês antes do concerto.
Cecília: Nós pensávamos assim: há o concerto de Copacabana editado para violão-solo. Então combinamos: “Vamos estudar o violão-solo, depois a gente pega o segundo violão”.
Fernando: Dividimos: estuda você dois movimentos, eu estudo esse, depois a gente pega o segundo violão. Deu errado. Na verdade, o Radamés reescreveu, era tudo diferente, redistribuiu tudo.
Cecília: Então, estudamos dois concertos (risos).
Fernando: Uma loucura! Mas então, quando começaram os ensaios com o maestro Gil Jardim, foi maravilhoso.
Cecília: Foi uma experiência fantástica tocar com ele regendo!
Fernando: Ele rege muito bem, ensaiou muito com a Orquestra.
Violão+: Era possível ver que vocês estavam muito felizes, isso exalava no ar…
Fernando: E é raro acontecer de tocar com orquestra dessa forma. Porque quando o músico vai tocar com Orquestra, ele chega dois dias antes, tem duas passadas (ensaios) – isso quando há esse tempo – uma antes da hora de tocar. Eu lembro que, nesse, a gente ensaiou uns quatro, cinco dias seguidos. Por sorte, foi desse jeito, porque quando a gente foi entrar para tocar, estavam na plateia o Leo Brouwer, o Sergio Abreu (que era o homenageado do dia), estava o (Paulo) Bellinati, o (Fabio) Zanon, o Manuel Barrueco, o Marcelo Kayath, o Paulo Porto Alegre e muitos outros. Nem dá para citar todos. Amigos, mas que eram nossos ídolos quando começamos a estudar violão. Então, ainda bem que a gente teve tempo para preparar tudo e ensaiar bem com a orquestra…
Cecília: Até o Eduardo Fernandez estava lá também. Era muita gente, não vamos nem conseguir lembrar de todos os nomes, deste festival excelente. A sociedade do violão estava lá.
Fernando: foi um momento muito especial mesmo. A homenagem ao Sergio (Abreu) foi um momento muito emocionante. Levaremos para o resto da vida com muito carinho.
Violão+: Quais instrumentos usam?
Fernando: Praticamente desde o começo, a gente usa os violões do Sérgio Abreu. Começamos com dois violões antigos dele, que adquirimos do Henrique Pinto (grande mestre do violão, falecido em 2011), que foi generosíssimo com a gente. Aliás, não dá para falar na criação do Duo Siqueira Lima sem falar no nome do Henrique, porque ele nos acompanhou desde o começo. Foi o nosso maior incentivador, acompanhou todas as etapas até a gente realmente conseguir alguma posição dentro do cenário musical. A gente deve isso tudo a ele. Os dois instrumentos da coleção íntima dele, passou para a gente. Usamos esses violões até recentemente. Encomendamos dois violões para o Sérgio Abreu em 2011. Ele demorou uns três anos para fazer, mas fez com o maior cuidado possível. Os violões ficaram prontos entre o fim de 2013 e o meio de 2014. São novos. A gente está dando um descanso para os outros, que a gente malhou muito. O duo se criou, apareceu, naqueles violões.
Violão+: Vocês são um casal, tocam juntos, ensaiam juntos, qual é a rotina de vocês? E como é a manutenção da técnica nessa rotina?
Fernando: Acaba sendo algo flexível, por causa dessa coisa mesmo, de fazermos tudo praticamente juntos. Existe uma dependência um do outro, que, incrivelmente, acaba dando certa liberdade. Por exemplo: estamos editando esse disco, separando material de edição. Então, a gente combina: “Ah, então essa semana a gente vai ficar editando? Vamos ficar o dia todo trabalhando nisso?”. Aí o outro fala: “Não, tem concerto mês que vem…vamos cuidando juntos de tudo” (risos). Quanto à técnica, geralmente, a agenda não deixa a gente perder a técnica. A gente acaba mantendo, até porque tem repertórios diferentes. E além da agenda, há a gravação de discos. A gente gravou um disco no ano passado, outro este ano, e isso exige muito. São coisas muito específicas, mas a gente acaba se direcionando. Por exemplo: pré-gravação. Vamos ficar um mês trabalhando na preparação dos repertórios. Aí a gente acorda, escova os dentes e vai.
Cecília: Trabalhar juntos ajuda a nos deixar focados no que for fazer, porque é 24 horas. Nós gostamos do que fazemos, então não é nenhum peso acordar e ter que estudar ou editar o disco. A gente fica feliz com isso. É muito prazeroso, então só acrescentou para o bem o fato de estarmos juntos.
Fernando: A carreira é uma coisa só, mas que envolve várias outras. No Duo Siqueira Lima, você tem coisas individuais, tudo precisa ser trabalhado. Então, às vezes, a gente combina de trabalhar algo separado, principalmente quando há coisa nova. Ou mesmo as coisas que a gente toca há tempos… Vai ter concerto essa semana? Vou dar uma “trabalhadinha” na memorização, porque a gente toca tudo decor. Entre as várias vantagens de tocar em duo: enquanto eu vou ficar estudando, você vai adiantando essa coisa da edição, ou, melhor ainda, você cozinha? Então, são muitas as vantagens de tocar em duo. Até para viajar, fazer o check-in… em suma, um ajuda muito o outro.
Violão+: E quando há uma discordância?
Fernando: Olha só que interessante: nós falamos das mil vantagens de tocar em duo, agora, entra a parte complicada. Quando você toca sozinho, resolve as coisas do seu jeito. Não há problema algum. Se na hora você quer mudar, não se preocupa com ninguém. Agora, tocar em dois é chegar a um ponto comum. Às vezes, é fácil, está na cara. Às vezes não. Cada um tem a sua opinião, fica daquele jeito, diz não me diz, na hora cada um faz do seu jeito mesmo (risos). Quem falou isso foi o Odair Assad: “O Sérgio fica falando para mim… No ensaio, até faço, mas na hora de tocar, faço do meu jeito” (risos). Tirando a brincadeira, a gente sabe que é trabalhoso mesmo.
Violão+: Mas vocês consultam referências externas?
Fernando: Muitas! O Henrique Pinto, por exemplo, era o nosso padrinho, a primeira pessoa para quem a gente mostrava. Começávamos a ler um negócio, mostrávamos para ele.
Violão+: Os violões são iguais, as cordas são as mesmas, mas a compleição física de vocês é completamente diferente. Deve haver uma série de diferenças, quanto à sonoridade, por exemplo. Então, como fazem para equilibrar isso?
Fernando: O Henrique também ajudou muito no equilíbrio do Duo Siqueira Lima. Nossos toques são muito diferentes. No violão, o toque é muito pessoal. Tem muito a ver mesmo com a compleição física, com a anatomia, o jeito da unha, tamanho dos dedos… Isso, à princípio, foi um problema. Eu sempre tocava muito forte. Quando você faz a coisa sozinho, faz do seu jeito. Então começamos a buscar uma sonoridade de duo, e o Henrique trabalhou muito isso com a gente. Agora, continuamos utilizando essa individualidade para enriquecer o trabalho camerístico. Mas é preciso estar se ouvindo o tempo todo, se encaixar.
Cecília: Foi muito trabalhoso, mas coisas boas aconteceram: eu gostava demais de como ele tocava e ele gostava de como eu tocava. Eu percebia coisas nele, no som, ele tocava forte, esse som me atraía muito. E eu era bastante flexível, isso o atraiu. São coisas diferentes, que geraram admiração. Então, para juntar, fica muito mais fácil. Eu, por exemplo, queria ter um som forte como o dele. Então, agora, toco mais forte.
Fernando: E eu queria ter a flexibilidade que ela tem. Acho que hoje, depois de mais de dez anos, tenho o toque muito mais parecido com o dela, e ela com o meu. É a convivência. Isso foi mudando o nosso trabalho.
Cecília: Com certeza. E é muito difícil mesmo conseguir chegar a um consenso 100%, quando há algum conflito. Mas é muito gostoso, as alegrias quando a gente vai tocar em duo se multiplicam e as tristezas se dividem. E a coisa boa é multiplicar.
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